O livro infantil é um objeto que tem ganhado formas criativas e encantadoras. As capas, as ilustrações, os materiais, os temas e os textos são trabalhados de forma a criar uma situação lúdica e explorar a imaginação dos pequenos.
Alguns são planejados para serem lidos pelas crianças já alfabetizadas, outros são histórias para serem contadas por adultos, de forma integrada com o manuseio e a observação das imagens. Há aqueles que são quase brinquedos, alguns conduzem ações, como tomar banho ou ensinam coisas compatíveis com o desenvolvimento de cada fase.
Os livros são pensados para diferentes públicos, como livros em braile, com audiodescrição e videolivros em Libras.
Na educação, especialmente dos anos iniciais, em que o foco é a alfabetização, a área de linguagens visa possibilitar aos estudantes participar de práticas diversificadas, que lhes permitam ampliar capacidades expressivas em manifestações artísticas, corporais e linguísticas, como também conhecimentos sobre essas linguagens e o desenvolvimento de habilidades de uso significativo da linguagem em atividades de leitura e escuta.
É muito importante que o trabalho educacional valorize os multiletramentos, que considera, como uma de suas premissas, a diversidade cultural, de forma a garantir uma ampliação de repertório e uma interação e trato com o diferente.
O projeto Literalibras (fomentado pela CAPES) é uma parceria do IFSC com escolas do Ensino Fundamental, anos iniciais, e objetiva promover momentos que favoreçam aos alunos surdos e ouvintes um desenvolvimento social, cultural, identitário e educacional, que contribuam para o reconhecimento de si e do outro. O projeto, que foi desenvolvido no curso de Pedagogia bilíngue, consiste na tradução de livros infantis, para vídeos em Libras. As histórias são apresentadas em aula pela professora.
Veja alguns dos vídeos com contação de histórias em Libras.
A literatura em Libras tem características muito peculiares. Para além dos aspectos linguísticos, é possível observar o uso de recursos visuais que revelam a expressividade da cultura visual dos surdos.
Selecionamos dois estudos de professores do IFSC sobre literatura em Libras que chamam a atenção para isso. A tese de Márcia Felício aborda a tradução simultânea de literatura em Libras e considera enriquecedor que a tradução para português deixe espaço para que o ouvinte observe o que está sendo mostrado em Libras, sem tentar descrever todos os aspectos imagéticos expressados pelo sinalizante. Isso pode ser importante para a poética da língua de sinais. E a tese de Veridiane Pinto Ribeiro que produziu um corpus criado especificamente para a pesquisa, em vídeos com a tradução de contos infantis, de português para Libras. O foco da pesquisa era estudar a língua de sinais e seus aspectos constitutivos corporificados, fundamentais para a expressão da cultura visual e relevantes na contação de histórias infantis.
Esses estudos são úteis para a formação de tradutores e intérpretes, para os professores da educação bilíngue e interessam aos designers na produção de livros acessíveis.
Ao elaborar um livro escrito, a tipografia é pensada para incentivar a leitura, para que flua de forma agradável e significativa de acordo com o público leitor. Para tanto, existem muitos estudos e cada detalhe precisa ser considerado, não apenas o desenho das letras, sua forma, mas também os espaçamentos, tamanho, formato do livro, margens, relação do texto com as imagens, numeração, títulos, estrutura dos capítulos e seções, notas etc. Os livros em vídeos em Libras precisam desses cuidados no detalhamento do enquadramento, cores, número de intérpretes que aparecem, figurino e adereços, movimentos e ângulos de câmera, relação da sinalização com outros elementos e o próprio estilo do sinalizante.
Na tese UMA PROPOSTA PARA INTERPRETAÇÃO SIMULTÂNEA DE PERFORMANCE EM LÍNGUA DE SINAIS NO CONTEXTO ARTÍSTICO, Márcia coloca que:
A literatura surda, expressa em performances de poesias, contos, narrativas e piadas, é tecida por sinalização artística, construída com riqueza de classificadores, descrições imagéticas, antropomorfismos, sinais não manuais, que são elementos extralinguísticos que se chama de signos linguais performáticos. O desafio que se apresenta para o TILS na interpretação simultânea dessas performances consiste, principalmente, em preservar os signos linguais performáticos no corpo do artista surdo, de modo que sejam lidos pelo espectador não sinalizante sem intervenção de interpretação.
Esses signos linguais performáticos são detalhados e classificados com uma rica descrição na tese A LINGUÍSTICA COGNITIVA E CONSTRUÇÕES CORPÓREAS NAS NARRATIVAS INFANTIS EM LIBRAS: UMA PROPOSTA COM FOCO NA FORMAÇÃO DE TILS.
O estudo tem como base teórica a Linguística Cognitiva e o modelo proposto por Bergen e Chang (2013), que define a Gramática de Construção Corporificada. Veridiane propõe então as bases para a Gramática de Gramática de Construções Visuo-Corporificada, com foco na língua de sinais, que tem inputs visuais e outputs visuo-corpóreo-espaciais.
Em síntese, a teoria parte de uma ideia holística da construção das línguas e defende que a aquisição, desenvolvimento e construção linguística se dá em relações indissociáveis entre forma e significado, bem como em experiências corpóreas por meio da língua em uso.
Esta peculiaridade corpórea ou corporificada das línguas, que para este estudo foca-se na Língua Brasileira de Sinais, é defendida como uma habilidade da linguagem humana dependente de habilidades cognitivas do ser humano em um processo de interdependência entre padrões morfológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos, prosódicos e percepções sensoriais, gerenciadas pelas experiências no mundo que nos rodeia. A linguagem não é fragmentada, é uma construção holística, envolvendo corpo e mente.
Veridiane Pinto Ribeiro
Na organização espacial da sentença em língua de sinais, não é o verbo que aparece primeiramente, mas o objeto, para depois apresentar a ação que este objeto sofreu. Isto porque a construção na mente do sinalizante se dá de forma imagética e o que aparece primeiramente em sua mente é o objeto. Veja alguns exemplos de construções imagéticas corporificadas.
1 CLASSIFICADOR MANUAL
Exemplo: menino levar vaca
O narrador usou uma configuração de mão para MENINO e outra para VACA, produzindo imageticamente o objeto para, em seguida, atribuir sobre ele a ação.
2 CONTEXTO VISUOFACTUAL
Exemplo: casa-pobre-pequeno-lote
Apresenta a base em que a narrativa se construirá, é o cenário de sinalização. O exemplo descreve o lugar usando os sinais de casa, pobre, pequeno, lote.
3 FIGURA-FUNDO
Exemplo: gigante-adormecer-sobre-a-mesa e menino-passar-sobre-a-mesa.
Mais de uma cena pode ser apresentada na mesma sinalização e depois pode-se dar destaque em uma ação dessa cena, como um zoom. Como o gigante adormecido sobre a mesa e o menino passar por ali.
4 REFERENTES VISUAIS (visuoverbal; visuopronominal; visuoadverbial; visuoadjetivado; visuonominal)
Exemplo: eu-cozinhar
Estes referentes são aspectos gramaticais que se relacionam em dependência de sentido na construção da sentença, recebendo um complemento que se refere às relações espaciais. O sinalizante constrói as sentenças relacionando-as com as produções imagéticas expressas no espaço de sinalização.
5 METAFONÍMIA
Exemplo: telhado-chaminé-fumaça-sair –
Depois de todos os conflitos enfrentados, os três porquinhos puderam voltar à vida normal, representada pela fumaça saindo da chaminé e pela expressão do narrador representando o sentimento de sossego. Com base no contexto visuoimagético, pode-se mudar o sentido de um sinal.
A Metafonímia de Movimento complementa ou modifica o sentido do sinal. O movimento repetitivo, lento, mais rápido ou sinuoso descreve situações diferentes. Veja que a distância pode ser imensa.
Exemplo: imensa distância
6 ICONICIDADE DE MOTIVAÇÃO
Exemplo: cansado
O sinal CANSADO relaciona-se a um estado corporal que tende a um movimento para baixo. Iconicidade de motivação são percepções de ordem corporal que servem de referência para produções linguísticas imagéticas. Podem ter motivação espacial, sensitiva e de medida.
7 DOMÍNIO VISUOIMAGÉTICO SUPERIOR
Exemplo: era uma vez
Nossa mente guarda as informações adquiridas nas experiências sociais, linguísticas e corpóreas e organiza essas informações em diferentes áreas do nosso conhecimento. Acionamos as memórias de acordo com o contexto; em um contexto de narrativas infantis, tudo que for dito fará o espectador entender a mensagem com um olhar fantasioso. Nesse contexto, o sinal de passado se refere à “Era uma vez” ou “Há muito tempo” ou ainda “Em um reino distante”.
8 DIREÇÃO VISUAL
Exemplo: olhar-para-cima
Direcionar o corpo e o olhar na direção do interlocutor ajuda o espectador a identificar quem está falando com quem. Olhar para cima ou para baixo, identifica se é a criança ou o adulto que está falando, por exemplo.
9 ZONA DE REPRESENTAÇÃO HOMÓLOGA-IMAGÉTICA E ZONA DE PROCESSAMENTO IMAGÉTICO-INTEGRACIONAL
Exemplo: lobo
A descrição do personagem leva o espectador a identificar suas características. Ao descrever um animal perigoso, de boca comprida, orelhas grandes, garras e com uma cara de mau, a criança surda evoca o conhecimento adquirido com a experiência corporificada, por meio de sua percepção visual.
10 EXPRESSÕES VISUOIDIOMÁTICAS
Exemplo: menino-correr-com-mochila
Uma ação, apresentada em um único quadro, pode representar duas ou mais palavras, ou mesmo uma sentença da Língua Portuguesa. A sentença “O menino correu carregando a mochila” é uma sentença que encontra sinais para cada uma destas palavras, mas na língua de sinais pode ser traduzida em uma única expressão.
11 DÊITICOS INTERROGATIVOS
Exemplo ao sinalizar o-quê
Nas línguas de sinais, o recurso linguístico dos dêiticos interrogativos semânticos é usado para unir sentidos na sentença. O narrador, ao destacar o questionamento, chama a atenção do espectador para uma informação considerada importante para o entendimento da narrativa.
A tese de Márcia Felício ainda buscou entender melhor as estratégias dos artistas surdos para alcançarem o espectador não sinalizante. Nas entrevistas que fez com autores surdos, destaca que eles se empenham em estratégias para atrair os espectadores, surdos ou ouvintes, por meio dos signos linguais performáticos que caracterizam a literatura surda. Os artistas surdos esperam a apreciação de seus movimentos, da estética criada no corpo do artista e pretendem provocar os sentidos com a arte. Mas observam que os ouvintes não estão acostumados com o olhar, que focam no que a voz diz, não prestam muito atenção nas expressões do olhar, e isso é muito significativo na cultura surda.
Observe outros exemplos de histórias em Libras e busque identificar como os recursos imagéticos extralinguísticos foram explorados. Siga as dicas dos artistas surdos e considere que temos muito mais para ver nas performances em língua de sinais.
Os vídeos com as contações de histórias foram desenvolvidos pelos estudantes do curso de Pedagogia bilíngue e coordenados pela professora Veridiane Pinto Ribeiro. Conforme relato das professoras que participaram do projeto, as crianças se envolveram nas atividades com entusiasmo e alegria e mostraram muito interesse na aprendizagem da Libras.