Os desafios da inclusão social dos surdos vão além das diferenças de comunicação, eles passam também pela cultura. A oferta de ferramentas de apoio educacional para esse público exige conhecimento da cultura surda, pesquisas e interações de todos os envolvidos no processo.
Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de se torná-lo acessível e habitável ajustando-os com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas e das ‘almas’ das comunidades surdas. Isto significa que abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos de povo surdo. (STROBEL, 2008, p.22).
STROBEL, 2008, p.22
No trabalho de conclusão de curso OS DESAFIOS NO DESENVOLVIMENTO DE SOFTWARE EDUCACIONAL ACESSÍVEL AO SURDO: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO APLICATIVO BIOLÍNGUE, Kelvin Bruno mostra a crescente demanda por ferramentas de ensino atreladas às tecnologias. Os softwares educacionais (SE) vêm ganhando espaço e auxiliam no ensino e aprendizagem dos estudantes dentro e fora da sala de aula. Principalmente para os surdos, essas ferramentas podem contribuir com significativas oportunidades de aprendizagem e inclusão na sociedade.
Entre as diversas possibilidades dos softwares educacionais estão os jogos digitais. O interessante dos jogos digitais é que eles são visualmente atraentes, instigantes e divertidos. Além disso, o uso do aprendizado baseado em jogos auxilia na interação entre os alunos e no desenvolvimento de diferentes habilidades. Porém, conciliar os propósitos pedagógicos com gráficos atraentes, com dinamismo e boa jogabilidade, é um grande desafio. Em especial quando se considera o padrão de qualidade ditado pelos jogos comerciais.
Na elaboração de um jogo digital com a funcionalidade de ser um software educacional, recomenda-se considerar a acessibilidade digital e a acessibilidade comunicacional.
A acessibilidade digital possibilita às pessoas com deficiência perceber, entender, navegar e interagir com sites e ferramentas, inserindo-as ativamente no ambiente digital.
W3C, 2010
A acessibilidade comunicacional deve promover a independência e a autonomia aos indivíduos e, para o surdo brasileiro, essa acessibilidade ainda é uma barreira evidente, já que existe grande carência de recursos desenvolvidos em Libras e a maior parte da população brasileira não sabe a língua. Foi elaborado então o jogo digital educacional Biolíngue, um jogo voltado para alunos surdos do 1.º ano do Ensino Médio. O desenvolvimento do Biolíngue ocorreu por meio da Maratona Unicef Samsung (2020), que visava fomentar protótipos de aplicativos educacionais para dispositivos móveis, a serem aplicados na rede pública de ensino do Brasil. Conforme Kelvin Bruno, ao longo do processo de desenvolvimento do protótipo, a equipe contou com a colaboração de mentores das áreas pedagógica e técnica. E os mentores tiveram papel primordial na discussão de estratégias de gerenciamento do projeto, bem como na definição das etapas do processo de desenvolvimento.
Projeto conceitual
Assim, o jogo digital foi desenvolvido para dispositivos móveis que utilizam o sistema operacional Android, abordando a temática das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), na área da biologia, apresentando conceitos e historicidade, dentro de uma narrativa em Libras, em que o aluno assume o controle de um personagem, um(a) agente de saúde, percorre a cidade, coleta informações e tira dúvidas dos moradores a respeito do tema.
A temática não foi selecionada ao acaso, foi feito um levantamento na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e dos protótipos desenvolvidos na edição anterior (2018) da Maratona Unicef Samsung. Entre os 31 aplicativos desenvolvidos, apenas um tinha como público-alvo os alunos surdos e nenhum abordava temática na área da biologia.
Posteriormente, os desafios foram definir como as informações seriam apresentadas e como o tema seria abordado de forma educacional. A equipe optou pela construção de uma narrativa em Libras, com apoio de imagens, texto e glossário com termos técnicos em Libras para melhor compreensão da temática.
Para a narrativa, foi proposto como protagonista um(a) agente de saúde que recebe instruções acerca das missões a serem cumpridas de um colaborador da Organização das Nações Unidas (ONU), com a finalidade de criar uma história linear e progressiva. De acordo com Bruno Kelvin:
Durante cada missão, o protagonista precisa coletar informações e interagir com os outros personagens, sanando dúvidas e exercitando seus conhecimentos. Para a definição do conteúdo, foram realizadas pesquisas nos sites da Organização Mundial de Saúde – OMS e Ministério da Saúde do Brasil, reunindo informações oficiais sobre prevenção, tratamento, historicidade e mitos, para embasar cientificamente a narrativa. Posteriormente as informações coletadas foram validadas com professores da área.
Daniela Saito, Bruno Kelvin
Depois, foi preciso definir qual seria o tipo de jogo e de mecânica, incluindo o conjunto de regras e objetivos. Após muitos estudos, a equipe optou por desenvolver o projeto de um jogo de aventura, utilizando as mecânicas de pontuações, informativos e pontos de interação contendo perguntas e respostas com feedbacks.
Design da interface
No design da interface e dos personagens do jogo, considerou-se as definições estabelecidas no projeto conceitual e decidiu-se utilizar elementos de duas dimensões (2-D). Os personagens foram produzidos de forma autoral e, para os demais elementos, foram utilizadas imagens de terceiros com licença livre de uso.
A tela inicial apresenta o menu de acesso ao jogo, glossário de termos Libras/Português e créditos do jogo. Além de oferecer acesso às configurações gerais do jogo, apresenta os personagens criados para representar o protagonista do jogo.
Na tela de seleção de personagem é disponibilizada a opção de escolha entre dois personagens que são os protagonistas: Bio e Bia. Os nomes dos personagens e do jogo foram escolhidos por fazerem referência à área de conhecimento da Biologia.
O jogador acompanha sua progressão em um mapa de fases. As embalagens de preservativo abertas mostram as fases cumpridas e já acessadas; as embalagens fechadas mostram as fases bloqueadas.
Com relação aos elementos referentes a jogabilidade e informações do jogo, foi seguido o padrão encontrado no mercado, sendo apresentadas na parte superior da tela as informações sobre fase, jogador, opção de configuração e saída.
O jogo oferece os seguintes elementos:
1. Botões de controle da direção do jogador – responsável por movimentar o personagem para a esquerda e direita, conforme nível de pressão; difere se está caminhando ou correndo.
2. Botão de pulo – responsável por executar o movimento de salto do personagem.
3. Barra de vida – informa o status de saúde do personagem.
4. Cronômetro – contabiliza o tempo que o jogador tem para realizar a fase.
5. Coleta de itens – contabiliza os itens coletados pelo jogador.
6. Botão de configuração – permite que o usuário controle as configurações do jogo.
A escolha dos elementos para compor o cenário teve como estratégia explorar o contexto social das comunidades populares do Brasil, aproximando o público-alvo com a narrativa, por meio da reflexão sobre fatores que podem tornar alguns públicos mais vulneráveis, como a pobreza, a dificuldade de acesso a serviços de saúde, a dificuldade de acesso à informação e educação, entre outros.
Daniela Saito, Bruno Kelvin
Ao longo do jogo vão sendo apresentados os pontos informativos. O protagonista recebe informações que são essenciais para responder às dúvidas dos outros personagens.
O processo de tradução e gravação da narrativa em Libras contou com a colaboração de uma intérprete de Libras que, além das filmagens, atuou na adequação dos textos para a tradução, na seleção dos termos para o glossário e na revisão do material.
Na interação entre o protagonista e os outros personagens, que buscam esclarecer suas dúvidas, são disponibilizadas quatro respostas, sendo apenas uma correta. Ao escolher a resposta, o protagonista recebe um feedback contextualizando o problema e prossegue com o diálogo.
Na conclusão de cada fase são apresentados outros diálogos, relacionados com a fase seguinte, criando uma narrativa progressiva e linear.
A primeira versão do Biolíngue foi disponibilizada para a banca da maratona, alunos e professores surdos do IFSC Câmpus Palhoça Bilíngue, para a realização de testes.
Foram feitas várias sugestões de aprimoramento da jogabilidade e da imersão na narrativa. Além de melhorar a configuração dos vídeos, foi sugerido customização dos personagens, melhoria nos controles de movimentação e aumento das informações quanto aos papéis das pessoas no contexto das políticas públicas de prevenção. Também foi proposto diferenciar as informações, perguntas, feedback, e diálogos usando cores diferentes.
As correções e melhorias sugeridas nessa etapa de testes foram implementadas e o jogo está disponível para todos:
A avaliação da nova versão do jogo usou um formulário on-line, com perguntas relacionadas ao grau de satisfação sobre o conteúdo, jogabilidade e acessibilidade, e foi respondido por 36 participantes, surdos e ouvintes. Além disso, a versão final está disponível na loja de aplicativos Google Play Store, onde também recebeu comentários de caráter subjetivo.
O Biolíngue foi considerado oportuno para agregar conhecimentos à temática para os alunos surdos. Mas Kelvin Bruno destaca que a presença do professor é importante no processo de aprendizagem, na mediação para a construção do conhecimento.
Referências
KELVIN BRUNO MONTEIRO VIANA. Os desafios no desenvolvimento de software educacional acessível ao surdo: relato de experiência do aplicativo Biolíngue. Palhoça: IFSC, 2020.
STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianópolis: UFSC, 2008.